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Parceria entre Unicamp e Cargill mudou o consumo de gorduras no país


Todos os dias, toneladas de produtos como biscoitos, sorvetes, margarinas, cremes, massas instantâneas, chocolates, bebidas lácteas etc., produzidas por grandes empresas, são consumidas no Brasil. E esse consumo ainda é alto. Estudos feitos com base na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nos anos de 2008–2009 e 2017–2018, apontaram um aumento de 5,5% no consumo de alimentos ultraprocessados no Brasil ao longo desse período. Além disso, no final da década passada, esses alimentos respondiam por 20% do total da energia consumida pelos brasileiros.

Alimentos ultraprocessados podem ser ricos em gorduras saturadas e elevar, no corpo, os níveis de LDL (conhecido como “colesterol ruim”). Por esse motivo, pesquisadores em todo o mundo, há muitos anos, estudam alternativas para contornar esse problema, tornando os produtos industrializados mais saudáveis, sem perder características como o seu sabor e sua textura.

Com esse objetivo, surgiu uma das parcerias mais longevas da Unicamp com a Cargill, responsável por influenciar diretamente o padrão de consumo de gorduras no país.  A empresa, uma gigante do setor alimentício presente em cerca de 70 países, processa e distribui grãos e outras mercadorias para abastecer fabricantes de alimentos voltados ao consumo humano e animal. O projeto de pesquisa e desenvolvimento (P&D) implementado em parceria com a Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) trouxe inovação para o setor ao criar um produto com baixo teor de gordura trans e que, no início dos anos 2000, já apresentava uma alta redução de saturados para os padrões da época.

Como começou a pesquisa da gordura de baixo teor de saturados

O processo começou há quase duas décadas, a partir de uma demanda do mercado. Na ocasião, duas multinacionais procuraram a Unicamp para o desenvolvimento de um convênio de pesquisa que tinha por objetivo a retirada de gordura trans dos recheios de biscoitos. Em 2007, a Unicamp e a Cargill assinaram o convênio que renderia uma patente premiada nas categorias Tecnologia Licenciada e Tecnologia Absorvida pelo Mercado no Prêmio Inventores da Unicamp, na edição de 2011, organizado pela Inova Unicamp. A partir dessa parceria, levada a cabo especificamente com os pesquisadores do Laboratório de Óleos e Gorduras da FEA, o conhecimento para a produção da nova gordura avançou e foi transferido para a Cargill, sendo comercializado na forma de produtos a partir daí adicionados ao processo de fabricação do recheio de biscoitos.

Os estudos continuaram no laboratório da Unicamp, agora sem investimento privado. Em 2012, foi a vez de a Unicamp procurar a Cargill com uma nova solução inovadora para o mercado de ingredientes. Tratava-se de uma forma de reduzir ainda mais os teores de gordura saturada em diversos alimentos, sem alterar o sabor ou a textura dos produtos.

Após uma série de estudos que incluíram testes de bancada, produção em escala piloto, aplicação em produtos finais e avaliação sensorial, o produto ficou pronto. A nova gordura passou a ser fabricada em escala industrial e começou a ser fornecida a fabricantes de alimentos, que, por sua vez, puderam reduzir os índices de gordura trans e saturadas de centenas de produtos consumidos no Brasil. Uma parceria que, até hoje, rende consideráveis recursos à Unicamp na forma de royalties.

“A Agência de Inovação Inova Unicamp participou de todas as etapas desses processos, desde o contato inicial com a empresa até a elaboração do contrato de licenciamento. A Cargill é um dos importantes casos de sucesso na transferência de tecnologias da Unicamp. Além do impacto positivo na sociedade, essa relação universidade-empresa gera royalties que ajudam a girar a roda da inovação na Unicamp”, lembra Iara Regina da Silva Ferreira, coordenadora de Negócios e Inovação da Inova Unicamp.

Tecnologia inédita em todo o mundo

A professora aposentada da FEA Lireny Aparecida Guaraldo Gonçalves, homenageada pela Inova Unicamp em 2023 por sua contribuição à proteção da propriedade intelectual e por iniciativas voltadas à inovação na Unicamp, participou do desenvolvimento da nova gordura desde as primeiras pesquisas. “O mundo inteiro estava à procura de uma solução como essa”, comenta Gonçalves.

“Pesquisadores de vários países estavam buscando uma maneira de reduzir o uso da gordura trans nos alimentos. Mas era preciso encontrar um produto substituto com menos teor de gordura saturada, que apresentasse as mesmas características sensoriais e cujo processo de fabricação industrial fosse viável. O desafio era muito grande”, comenta a inventora.

A professora orientou na FEA Unicamp o doutorado do pesquisador Renato Grimaldi, que posteriormente viria a participar do e trabalhar no desenvolvimento da nova tecnologia. Grimaldi conta que, em um primeiro momento, uma grande multinacional de alimentos havia procurado a FEA para desenvolver uma gordura com menor teor de saturação. “Contudo, era preciso contar com uma fornecedora de gorduras para que o novo ingrediente pudesse ser entregue a essa indústria de alimentos. Foi naquele momento, há 16 anos, que surgiu a relação com a Cargill nessa pesquisa”, explica.

Assim, a equipe do Laboratório de Óleos e Gorduras da FEA desenvolveu a primeira tecnologia, uma gordura com menor teor de saturação, que passou a ser usada no recheio de biscoitos industrializados. “Mas nós sabíamos que a redução desse teor podia ser maior. Nós podíamos melhorar ainda mais essa gordura”, lembra o pesquisador.

Uma pesquisa que se antecipou às exigências do mercado

Grimaldi comenta que tinha o hábito de acompanhar as sessões públicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Ministério da Agricultura e Pecuária, em Brasília. Dessa forma, ele sabia que a gordura saturada, bem como o sódio e o açúcar, estavam na mira dos órgãos de saúde pública na década passada e que uma redução ainda maior do seu consumo seria logo exigida pelo governo. “Resolvemos então fazer avançar essa pesquisa, de forma independente, dessa vez sem parcerias com empresas. A demanda do mercado iria surgir inevitavelmente. Decidimos antecipar essa demanda”, comenta.

Segundo ele, a nova fase de pesquisa teve como objetivo quatro pontos essenciais para atender aos requisitos da indústria:

“Era preciso uma solução que não afetasse os aspectos sensoriais da gordura – mesma cremosidade, consistência e textura –, cujo tempo de vida deveria ser longo o suficiente para não reduzir o prazo de validade dos alimentos, cujo custo não podia ser superior ao da gordura usada até então e que, além de tudo isso, não poderia exigir a substituição do maquinário das instalações industriais dessas grandes empresas”.

Nessa fase de desenvolvimento, o pesquisador lembra que participou de centenas de testes sensoriais com os produtos. “Conseguimos chegar a uma nova gordura, com um teor de cerca de 35% de saturados. Um produto com grande estabilidade, pois quanto menor a saturação, maior a tendência de a gordura se comportar de forma líquida, o que é próprio das gorduras insaturadas. A nova gordura tem uma ótima estabilidade estrutural e térmica, ou seja, assegura que os alimentos não se oxidem facilmente, mantendo sua estrutura e uniformidade”, explica.

Com a publicação de uma nova resolução da Anvisa, essa mais exigente, retomou-se a parceria com a Cargill, permitindo que a tecnologia avançasse, agora, em seu desenvolvimento comercial. Em entrevista ao Podcast Prontos para o Futuro, em comemoração aos dez anos do Centro de Inovação da Cargill, Marcos Guirardello, líder de pesquisa e desenvolvimento na área de produtos de consumo e óleos e gorduras da empresa, falou sobre a relação da multinacional com a Unicamp:

 “Temos uma parceria de longa data com a Universidade e projetos de inovação exigem que a gente saia da zona de conforto. Essa confiança mútua já nos ajudou, permitindo uma abertura e uma interação melhores e o surgimento de produtos estratégicos, como foi o caso do Lévia+e. Nós colaboramos com o que foi necessário para que os pesquisadores explorassem ao máximo seu conhecimento e potencial de execução, levando em conta principalmente as instalações e os recursos que temos no nosso centro de inovação. O resultado foi um produto que fez e ainda faz muito sucesso”, afirma Guirardello.

(Fonte: Jornal Unicamp, 26 de janeiro de 2024)

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